sexta-feira, 30 de abril de 2010

Notes from Brooklyn’s most cultish literary couple


Um livro de memórias sobre factos, causas e consequências de um colapso nervoso e uma obra de ficção sobre o colapso.
O dela saiu para o mercado norte-americano no mês passado. O dele sairá lá para meados de Novembro próximo.
O dela parte de uma história real sobre um estranhíssimo achaque nervoso sofrido quando proferia a elegia fúnebre no enterro de seu pai. O dele parte de um julgado pequeno achaque financeiro que redundou numa tormenta cataclísmica que pôs o capitalismo e o seus súbditos de joelhos, contado sob a perspectiva de uma variedade de narradores.
Ambos têm as suas obras editadas em Portugal pela mesma editora: a Asa.
A dela, no original com 224 páginas em formato de capa dura, estreará se a subsidiária da LeYa pretender publicar um livro seu de não-ficção (facto até hoje inédito). A dele, no original com mais 96 páginas que o dela e no mesmo formato, terá direito à já anunciada publicação simultânea mundial, tal como aconteceu com a sua obra anterior, Invisível (Invisible, 2009).
A abertura do livro de memórias dela:
«Quando o meu pai morreu, eu estava em minha casa em Brooklyn, porém apenas uns dias antes estive sentada na beira da sua cama numa casa de saúde em NorthField, Minnesota. Embora ele estivesse fisicamente debilitado, a sua mente mantinha-se perspicaz, e lembro-me de que falámos e até nos rimos, apesar de não me conseguir lembrar do tema da nossa última conversa. No entanto, recordo-me com nitidez do quarto que ele habitou no fim da sua vida. As minhas três irmãs, a minha mãe e eu pendurámos quadros na parede e comprámos uma colcha verde-pálida para que o quarto parecesse menos austero. Havia um vaso de flores no parapeito da janela. O meu pai sofria de um enfisema e nós sabíamos que ele não duraria muito. A minha irmã Liv, que vive no Minnesota, foi a única que o acompanhou no dia derradeiro. O pulmão do meu pai entrou pela segunda vez em colapso e o médico sabia que ele não sobreviveria a outra intervenção. Enquanto permaneceu consciente, embora incapaz de falar, a minha mãe telefonou às suas três filhas que viviam em Nova Iorque, uma por uma, para que todas pudéssemos falar com ele ao telefone. Lembro-me claramente de ter feito uma pausa para pensar naquilo que lhe haveria de dizer. Acorreu-me um pensamento estranho de que não deveria proferir nenhum disparate naquele momento, deveria escolher cuidadosamente as minhas palavras. Queria dizer algo de memorável – um pensamento absurdo, porque a memória de meu pai em breve se apagaria com o pouco que ainda lhe restava. Porém, quando a minha mãe lhe encostou o telefone ao seu ouvido, tudo o que fiz foi pronunciar num tom abafado as palavras “adoro-te tanto”. Mais tarde, a minha mãe contou-me que quando ouviu a minha voz, ele sorriu.»
Siri Hustvedt, The Shaking Woman or a History of My Nerves, pp. 1-2 [New York: Henry Holt, first edition, 2010, 224 pp.; tradução: AMC, 2010]
A abertura do romance dele repousa no segredo dos deuses, no entanto há umas frases publicadas pela sua editora (a mesma que a dela) que aguçam o apetite a qualquer austeriano:
«Sunset Park segue as esperanças e os medos de um conjunto inesquecível de personagens, reunidas pelo misterioso Miles Heller durante os meses sombrios do colapso económico de 2008.
Um rapaz enigmático empregado numa empresa de limpeza de imóveis no sul da Florida que fotografa obsessivamente milhares de objectos abandonados pelas famílias que foram desapossadas de suas casas.
Um grupo de jovens que ocupa ilegalmente um apartamento no Sunset Park, em Brooklyn.
O Hospital dos Objectos Partidos, que se especializou na reparação de artefactos pertencentes a um mundo desaparecido.
O filme de 1946 de William Wyler, Os Melhores Anos das Nossas Vidas.
Um actriz célebre que prepara o seu regresso à Broadway.
Um editor independente que tenta desesperadamente salvar o seu negócio e o seu casamento.» [do editor Henry Holt; tradução livre: AMC, 2010]

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Bellow ao quadrado

Foi apenas hoje que, enquanto perscrutava os escaparates de uma livraria concorrente, mais asseada, diversificada e arrumada, para somar à minha onerosa (de certo modo, utópica) lista de desejos para os Dias do Aderente Fnac nas próximas quinta e sexta-feira – nos tempos que correm, não são despiciendos os 19% de desconto sobre o preço de capa –, reparei numa nova edição de um romance de Bellow no mercado editorial português. Trata-se do admiravelmente urdido Morrem Mais de Mágoa (More Die of Heartbreak, 1987), talvez o último romance de grande fôlego do autor canadiano de nascença, embora americano crónico desde tenra idade.
Bellow é responsável por um dos mais saudáveis dilemas no meu habitual e íntimo exercício de classificação da obra de um autor em que pelo menos dois terços daquela hajam passado pelo meu crivo estético-literário; e esse dilema mostrou o seu aspecto de dolorosa indecisão – como se escolher um romance em detrimento de outros se tornasse um caso de vida ou de morte, talvez uma vacuidade neste mundo filistino, a tender inexoravelmente para o absoluto do qualificativo – quando na minha passagem relâmpago pelo Facebook (a um ano de distância a desistência após três meses afigura-se-me cada vez mais como um acto prudente e ajuizado, um bem-haja para mim) me propuseram que, à queima-roupa, postasse uma listagem com os meus 10 ou 15 romances preferidos, sem muito pensar ou discernir para não contaminar a imposta espontaneidade. Assim o fiz e de imediato fui criticado, porque para além de ter efectuado trabalhos manuais de “copiar e colar” de um texto que havia escrito há alguns anos, tive de colocar um asterisco à frente da obra de Bellow porque não me conseguia decidir entre três das suas obras como a minha favorita, por onde vagueava com firmeza a acima mencionada; e, assim, a que figurava no arrolamento tornava-se perfeitamente intermutável com as outras duas, sem que a tal lista corresse riscos de desmoronamento por atentado à integridade da minha curta reflexão.
Mas voltemos aos escaparates da dita livraria, verifiquei com surpresa que a Quetzal editou o Morrem Mais de Mágoa, com nova tradução, quando uma outra de responsabilidade da editora Livros do Brasil circula ainda sem rupturas no mercado, com uma excelente tradução (aliás é seu apanágio) de Fernanda Pinto Rodrigues – e não é de todo necessário entrar neste caso, e como me parece óbvio, com o critério da pobreza estética das edições antigas da colecção “Dois Mundos” nesta editora (ver imagem) –, recuperando a de 1989 do Círculo de Leitores – jovem de 21 anos. De imediato, averiguei se nas badanas ou na contracapa existia um manifesto sobre a continuidade de publicação das obras do Prémio Nobel da Literatura de 1976. Para meu contentamento, a Quetzal irá continuar a publicar Bellow, embora no meu entender tenha começado mal, e esta apreciação não se prende só com a duplicação de Morrem Mais de Mágoa no, parco em qualidade, mercado editorial luso (a potência do título é hiperbólica), mas com a tríade de obras inacreditavelmente ainda não publicadas em Portugal:
  • The Adventures of Augie March (1953);
  • Humboldt’s Gift (1975);
  • The Dean’s December (1982).
E depois, nada me garante que as que se seguem não sejam aquelas que duas editoras, agora do grupo LeYa, a Texto e a Teorema, tinham vindo a publicar de forma sistemática desde o ano 2000, antes da mediática aquisição.
E para terminar, mais uma pequena irritação – apenas aplacada pela exposição do primeiro parágrafo desta notável obra, logo a seguir –, desta feita, julgo que de origem tipográfica, na badana da capa da nova edição, Bellow viveu quase 100 anos, nasceu na província do Quebeque, no Canadá, em 1905…

«[O] ano passado, quando atravessava uma crise na sua vida, o meu tio Benn (B. Crader, o famoso botânico) mostrou-me um cartoon de Charles Addams. Era um cartoon trivial, bom para um sorriso, mas o Tio estava embeiçado por ele e queria discuti-lo minuciosamente. A mim não me apetecia analisar um cartoon. Ele insistiu. Mencionou-o relacionando-o com tantas coisas que me irritei e encarei até a ideia de mandar emoldurar o mamarracho e oferecer-lho no dia dos seus anos. Pendura-o na parede e livra-te dele, pensei. De vez em quando, Benn conseguia bulir-me com os nervos, daquele modo que só uma pessoa que ocupa um lugar especial na nossa vida consegue. Ele ocupava, sem sombra de dúvida, um lugar especial. Eu amava o meu tio.»
Saul Bellow, Morrem Mais de Mágoa, p. 7 [Lisboa: Livros do Brasil, 1990, 353 pp.; tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.]

quinta-feira, 22 de abril de 2010

É pau, é pedra (corrigido)

É a literatura a descaminho.
Não são, felizmente as Águas de Março, fechando o Verão, mas os seus Meados no hemisfério Norte que anunciam a Primavera – época de bulício da natureza e do alvor de uma vida que se renova, ou quase…
Em Portugal, é também significado de livros em catadupa – não há carteira que resista à torrente livreira de frontispícios engalanados com prémios e encómios expelidos, como cinzas vulcânicas – que actual – por gente validada. Novidades editoriais. Livros fechando o Inverno da modorra comercial pós-natalícia.
Vejamos. Surgiu o incensado Booker de Mantel, e já se anuncia (para amanhã) o Submundo do notável DeLillo. Publicou-se em simultâneo mundial o mais recente de McEwan; chegou finalmente, com atraso de décadas, a fazer jus à instituição do título que a designa, o(s) Correios de Bukowski (Post Office, 1971)*; ou o Winesburg, Ohio de Sherwood Anderson. Biografias de Kerouac e de Orwell, e mais uns ensaios deste último. Um Bolaño fraquinho, porém inédito. O Hooligan de Manea. Tolstói e Turguéniev (ou Turguénev, vá lá entendam-se, doutos do cirílico russo, quanto à transliteração do mais ocidental dos seus filhos literários oitocentistas) a rodos. A última compilação de contos do recentemente desaparecido Updike, quando se anuncia o Volume II dos contos de Cheever pela Sextante. Reedição do 2.º romance de Auster (data de 1987), negro, sombrio e devastador, que mesmo a ilustrada Moura Pinheiro apresentou como novidade do autor de Newark. O alter-ego de Banville para os policiais. Antes disso houve Jean Rhys, Coetzee, e Valter Hugo Mãe, nos portugueses apreciados. E, por fim, o destaque para o regresso de Martin Amis à grande literatura, com A Viúva Grávida (The Pregnant Widow), publicado em Fevereiro em Inglaterra e apenas dois meses depois em Portugal (edição Quetzal, saúde-se):
«O único romance que ela elogiava sem reservas era Meados de Março1. Porque Lily era uma criatura do mundo mediano.»
Martin Amis, A Viúva Grávida, p. 42
[Lisboa: Quetzal, Abril de 2010, 533 pp.; tradução de Jorge Pereirinha Pires e revisão de Carlos Pinheiro.]
Talvez tenha havido uma electrocussão arbórea – raios cataclísmicos das águas de Março, conduzidas à terra pelo tronco enraizado –, porque a nota do tradutor “1”, postada logo após “Meados de Março”, remete-nos, em pé de página, para Middlemarch. Um caso de gravidez literária, com viúvas mas sem hiatos e herdeiro, porque histérica – abusando, sem remorsos, das águas correntes de Herzen (1812-1870).
Naquele excerto, Amis procurou jogar ironicamente com as palavras, na descrição da activista igualitária de género Lily, conjugando-a com a leitura compulsiva dos clássicos da literatura inglesa por Keith – personagem principal do romance e seu namorado, projecção do autor (mas não o seu superego, essa é outra história): trocadilho entre “Middlemarch” e “middleworld” (esta última traduzida por “mundo mediano”), em que a primeira surge sempre grafada com maiúscula e é citada em várias ocasiões ao longo das mais de quinhentas páginas que compõem a obra.
Ora, o inventivo e esdrúxulo Meados de Março é, tão-só e somente, a obra-prima da escritora vitoriana George Eliot (pseudónimo de Mary Anne Evans, 1819-1880), traduzida para português há várias décadas – recentemente reeditada pela Portugália, com prefácio de Jorge de Sena – como A vida era assim em Middlemarch. Pois, Middlemarch é uma vila ficcional criada por Eliot onde decorre a trama do romance entre 1830 e 1832, que a autora localizou nas Midlands inglesas (zona geográfica central de Inglaterra, entre as zonas norte e sul do país) – obra considerada por Amis, como o melhor romance de língua inglesa.
Se a moda pega, passaremos a ter mais literalismos proparoxítonos, como por exemplo, “Sussex” por “Sexo da Sue”, ou “Cornwall” por “Muro de Milho”, ou até “Blackburn” pelo intolerante e cruel “Queima de Negros”. E não se procurem exemplos sancionadores da asneira, por exemplo, Eugenides, com o seu Pulitzer Middlesex, não é para aqui chamado, porquanto, em boa verdade, o hermafroditismo é a base do seu romance.
E assim vamos andando, rindo e cantando neste acabrunhado país, onde a capital, a imensa cidade-prelo – como significação da fuga e da concentração nesse local, banhado pelo Tagus e o seu Straw Sea, das editoras nacionais –, poderá a partir de hoje literalizar-se em “Hornylily” – curiosamente a tal personagem do “mundo mediano” de Amis, que percorreu a narrativa em “meados” de qualquer coisa –, onde a sugestão de lubricidade poderá funcionar com factor captador de receitas extraordinárias provenientes do turismo anglófono.
Nota – não resisto a postar mais um exemplo sublime de confrontação entre a ficção (no que respeita ao romance inglês) e a realidade ficcionada no romance de Amis, corporizada na batalha dos pensamentos voluptuosos do jovem Keith perante Scheherazade e Gloria (mamas e rabo, respectivamente), com mais um exemplo de literalismo (pelo menos, felicite-se, há coerência do princípio ao fim):
«“E nunca te hei-de perdoar pela Rosamond Vincy”, disse ela [Lily] (retomando a discussão deles acerca do romance por ela preferido – Meados de Março). “Está lá a bela Dorothea, e tu vais atrás daquela cabra gananciosa da Rosamond Vincy. Que arruina [sic] o Lydgate. Badalhocas e vilões. É só disso que tu agora gostas – badalhocas e vilões.”» (p. 386)
*[Correcção, 23/4 às 11:10] Fui, felizmente, alertado por e-mail para um erro de facto cometido neste texto: a primeira publicação em Portugal de Correios de Charles Bukowski é de 2002 e foi da responsabilidade da extinta editora Canguru, com tradução de Marisa Mourinha. Apesar de a referida publicação ter escapado ao conhecimento do grande público – no qual me incluo, sendo um grande admirador da obra do impetuoso autor germano-americano –, isso não invalida que não se corrija o erro (crasso) que aqui cometi, ao referir-me, de forma indirecta, ao carácter inédito da publicação de 2010 da Antígona, com tradução de Rui Lopes.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Infinidades

Moderada e incoerentemente publicado em Portugal, não é de surpreender que o último romance do já sexagenário escritor irlandês John Banville (n. 1945) não seja notícia ou, pelo menos, objecto de bulício literário no meio editorial nacional – dois advérbios de modo a abrir o texto para provocar estrondosos arrepios aos escrupulosos guardiães da língua portuguesa, e (ai, e a vírgula a seguir à conjunção copulativa…) por, gramaticalmente, ser tão ao gosto do autor em questão (suponho ser dele a maior sucessão de advérbios de modo que pude ler numa obra de ficção, em cujo uso García Márquez manifestava uma enorme repulsa ou, pelo menos, relutância, embora os haja utilizado profusamente na sua primeira autobiografia, Viver para Contá-la).
Em 2005, Banville vence inesperadamente o seu, por enquanto único, Booker Prize, com a novela, mascarada de romance, por jeito regulamentar conferido pelo júri do mencionado galardão, O Mar (The Sea; entre nós publicado(a) em 2006 pela Asa – na altura, editora símbolo do orgulho literário e da independência literária portuenses –, ainda fora do caldeirão LeYa), num ano cujo sexteto finalista foi até hoje, na minha única e inderrogável perspectiva, um dos mais ilustres desde 1969 (annus mirabilis em que o Booker começou a ser atribuído).
Mas a literatura irlandesa tem sido um problema luso. Beckett, Joyce e, em certa medida, Bernard Shaw à parte e nas suas épocas, continuamos a publicar de forma episódica e errática os grandes autores contemporâneos do país da Harpa Gaélica. Se Portugal contasse no mercado editorial mundial, Banville até nem teria muitas razões para se queixar pelo constatado esquecimento hibérnico que assola o cantinho literário luso; lembremo-nos, por exemplo e para citar apenas alguns dos mais recentes ou contemporâneos, Sebastian Barry ou Colm Tóibín ou até mesmo, vogando para terras do Ulster, pelo mundo dos mortos e por tempos mais remotos, o aclamado Flann O’Brien (1911-1966), pseudónimo mais reconhecido de Brian O’Nolan, cuja obra-prima, assim universalmente considerada, At Swim-Two-Birds (1939) continua por publicar no mercado nacional, onde na sua algaraviada deprecatória se ouvem os sons abafados da ainda 6.ª língua mais falada em todo o mundo.
Mais de quatro anos volvidos, Banville volta a publicar um romance, libertando-se do seu heterónimo (pelo menos, nas suas confissões, pressentem-se os sintomas de desmultiplicação do eu, processo eminentemente pessoano) Benjamin Black. Banville é um autocrítico implacável, duro e, por vezes, tão severo, que as suas palavras autodepreciativas roçam os cenários conjecturais mais hórridos da autoflagelação. Black é prolífico, simples, redutor e escreve romances policiais, cujas palavras surgem como torrentes – segundo confissão do próprio – erigindo como epítome o belga, literariamente fértil, Georges Simenon e a obra das obras La neige était sale (1948), na opinião do escritor irlandês.
Por agora, jaz, constrangido, na minha pilha dos livros de leitura futura, a novel edição da Asa do primeiro romance de Black na era de fecundidade do alter-ego de Banville – O Segredo de Christine (Christine Falls, 2006). A seu tempo apreciá-lo-ei palavra por palavra, arabesco por arabesco. Todavia, para um banvilliano confesso, por maior que seja o menosprezo do próprio autor pela sua obra publicada – que se fosse outro a dizê-lo, lembro-me por exemplo de Auster, seria interpretado como um exercício da mais descarada forma de auto-indulgência de apelo à piedade pelo desgraçado –, os sintomas de ressaca de banviallina já se manifestam, catalisados pelo nervo óptico, tal é a quantidade de lixo estrangeiro que, hoje em dia, por aqui se publica. Só quem não leu o devastador, melancólico e sombrio (pois claro, está no título) Eclipse (2000) ou, por exemplo, os concatenados O Livro da Confissão (The Book of Evidence, 1989) e Fantasmas (Ghosts, 1993), é que pode vituperar estas curtas linhas de pura e irrestrita afeição literária.
Banville, o artista perturbado com o seu passado literário, lançou mão do seu predilecto e fonte de inspiração Heinrich von Kleist (1777-1811), baseando o seu romance mais recente na peça de teatro burlesca Anfitrião (Amphitryon, 1807), que o ilustre e desassossegado alemão foi beber à fonte inexaurível de Molière, que já vinha do romano Plauto, precedido, segundo se diz (não existe escrito), pelo génio criativo do grego Sófocles. O romance chama-se The Infinities, usando como referência a imortalidade olímpica.
Eis um pequeno excerto (1.º parágrafo) da, por agora, elogiadíssima obra, com tradução cá da casa – apesar do temor (e tremor) inicial em arruinar (dantescamente condenado às chamas do círculo nono do Inferno, traditore) as palavras etéreas que saem daquela pena:

«De entre as coisas que criámos para que eles se possam sentir desassombrados, o alvorecer é a que funciona melhor. Quando a escuridão é coada pelo ar, como suaves e finas partículas de pó, e a luz começa a espalhar-se, vagarosamente, a partir do Oriente, nesse instante todos, excepto os mais miseráveis entre a humanidade, recobram forças. É um espectáculo que nós, imortais, desfrutamos, esta pequena ressurreição diária; muitas vezes juntamo-nos nas muralhas das nuvens e fitamo-los, os nossos pequeninos, à medida que se agitam para acolher o novo dia. Que silêncio, então, se abate sobre nós, o triste silêncio da nossa inveja. Muitos deles continuam a dormir, claro, alheados do encantador truque matutino da nossa prima Aurora, mas há sempre os insones, os enfermos agitados, os mal-amados a dar voltas nas suas camas solitárias, ou apenas os madrugadores, os atarefados, com os seus alongamentos, os seus duches frios e as suas chaveninhas aparatosas de ambrósia negra. Sim, todos aqueles que o testemunham saúdam o alvorecer com alegria, ou quase todos, se exceptuarmos, claro, os homens condenados, para quem a primeira luz será a última sobre a Terra.»
John Banville, The Infinities, p. 1 [tradução livre: AMC, 2010]
[London: Picador, September, 2009, 304 pp.]

Um mimo simbolicamente banvilliano (ou banvillianamente simbólico?)
Obras de John Banville editadas em Portugal, organizadas cronologicamente (data de publicação da obra original), da mais antiga à mais recente:
  • Doutor Copérnico (Dom Quixote; obra original: Doctor Copernicus, 1976) – inacreditavelmente, sem seguimento com as restantes duas obras que completam a “Trilogia das Revoluções”, literatura e ciência: Kepler (1981) e The Newton Letter (1982);
  • O Livro da Confissão (Quetzal; obra original: The Book of Evidence, 1989);
  • Fantasmas (Dom Quixote; obra original: Ghosts, 1993): neste caso, ficou por publicar o último livro da sua segunda trilogia, “Frames” – dada a carga semântica deste título, optei por o deixar em inglês, porquanto se refere não só à simples “moldura” de um mero quadro (roubado pelo omnipresente e brutal narrador no 1.º livro), como também à “urdidura” ou “trama”, bem como ao referencial temático da relação entre a arte (pintura) e a literatura, intertextualidade e descrição minuciosa do objecto artístico –, trilogia, então, constituída por este e pelo livro precedente, e ainda pelo não publicado Athena (1995);
  • O Intocável (Dom Quixote; obra original: The Untouchable, 1997);
  • Eclipse (Ulisseia; obra original: Eclipse, 2000);
  • O Impostor (Ulisseia; obra original: Shroud, 2002);
  • Imagens de Praga: Retratos de uma Cidade (Asa; obra original: Prague Pictures: Portrait of a City, 2003);
  • O Mar (Asa; obra original: The Sea, 2005);
  • O Segredo de Christine (Asa; obra original: Christine Falls, 2006) – publicada sob o pseudónimo Benjamin Black.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

IMPAC 2010 – Finalistas

Três autores britânicos, um alemão, um francês, um holandês, um irlandês e uma autora norte-americana formam a lista de oito finalistas do IMPAC Dublin Literary Award de 2010, cujos semifinalistas (156 romances de outros tantos autores) já aqui dei notícia no dia 3 de Novembro do ano passado. Ei-los (ordenados alfabeticamente pelo nome do autor):
  • Christoph Hein, Settlement (obra original: Landnahme, 2004; obra nomeada na fase inicial por 1 biblioteca).
  • Gerbrand Bakker, The Twin (obra original: Boven is het stil, 2006; obra nomeada na fase inicial por 4 bibliotecas, todas holandesas).
  • Joseph O’Neill, Netherland: Terra de Sombras (edição portuguesa: Bertrand; obra original: Netherland, 2008; obra nomeada na fase inicial por 7 bibliotecas).
  • Marilynne Robinson, Home (2008; obra nomeada na fase inicial por 4 bibliotecas).
  • Muriel Barbery, A Elegância do Ouriço (edição portuguesa: Presença; obra original: L’Élégance du hérisson, 2006; obra nomeada na fase inicial por 8 bibliotecas).
  • Robert Edric, In Zodiac Light (2008; obra nomeada na fase inicial por 1 biblioteca).
  • Ross Raisin, God’s Own Country (2008; obra nomeada na fase inicial por 1 biblioteca).
  • Zoe Heller, The Believers (2008; obra nomeada na fase inicial por 1 biblioteca). 

Notas:
  1. Dos 8 romances, apenas 2 foram publicados em Portugal;
  2. O romance com maior número de nomeações na fase inicial (9 no total), a obra, na minha opinião pessoal, a tender para o sofrível de Aravind Adiga, O Tigre Branco (The White Tiger; Booker Prize em 2008), ficou de fora da lista de finalistas.
  3. O vencedor do IMPAC 2010 será revelado no próximo dia 17 de Junho.

Vencedores das edições anteriores:
2009 – Michael Thomas – Man Gone Down
2008 – Rawi Hage – Como a Raiva ao Vento (Civilização, 2008)
2007 – Per Petterson – Cavalos Roubados (Casa das Letras, 2008)
2006 – Colm Tóibín – O Mestre (Dom Quixote, 2007)
2005 – Edward P. Jones – The Known World
2004 – Tahar Ben Jelloun – Uma Ofuscante Ausência de Luz (Asa, 2003)
2003 – Orhan Pamuk – O Meu Nome é Vermelho (Presença, 2007)
2002 – Michel Houellebecq – Partículas Elementares (Temas e Debates, 1999)
2001 – Alistair MacLeod – No Great Mischief
2000 – Nicola Barker – À Flor da Pele (Gradiva, 2000)
1999 – Andrew Miller – A Dor Industriosa (Teorema, 1999)
1998 – Herta Müller – A Terra das Ameixas Verdes (Difel, 1999)
1997 – Javier Marías – Coração Tão Branco (Relógio D’Água, 1994)
1996 – David Malouf – Recordando a Babilónia (Assírio & Alvim, 2009)

Depois do auto de notícia, de volta à hibernação reparadora…

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Lucros Climáticos


«Beard poisou uma mão no braço do amigo, um sinal certo de que tinha ultrapassado bem o seu limite.
– Escute, Toby. Estamos perante uma catástrofe. Esteja descansado.»
Ian McEwan, Solar, p. 259.
[Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Março de 2010, 338 pp.; tradução de Ana Falcão Bastos; obra original: Solar, 2010]
Um exemplar críptico mcewaniano, para leitura, descodificação, compreensão e reflexão.